A faixa de capitão no braço esquerdo e a liderança que exerce em campo já deixam claro o talento que o pequeno Fernando tem para o futebol. Mas o capacete à la Petr Cech entrega que existe algo diferente no menino de 12 anos. O camisa 7 da equipe sub-13 de Natal na Copa Fla Nordeste – uma das edições do torneio entre as Escolinhas de Futebol do Flamengo realizada recentemente em Natal e acompanhada pelo GloboEsporte.com – nasceu surdo, fez implante coclear no ouvido esquerdo quando tinha apenas 2 anos para poder escutar e hoje em dia utiliza o aparato para proteger seu aparelho auditivo de possíveis boladas. Em campo, o garoto faz parecer que não tem qualquer limitação. E o fim deste capítulo da história de Fernando foi perfeito: marcou o gol do título na decisão por pênaltis, após empate na final, e seu time se sagrou campeão na categoria. Ele, como capitão, ergueu o troféu.
A paixão de Fernando pelo futebol vem desde cedo, mas a mãe dele, Rafaela, sempre teve muito medo por conta do aparelho auditivo. Acabou cedendo. O início foi debaixo do travessão de futsal, mas o goleiro é quem mais sofre com as boladas, por isso a mãe o fez ir para a linha. Depois trocou a quadra pelo campo, com uma condição imposta pelo padrasto, Márcio: substituir a fita (de tenista) que usava na cabeça por um capacete como o de Cech. No começo incomodava, mas agora o menino garante ter se acostumado.
– Ele gosta de futebol desde sempre. Segurei até onde pude. Botei em outros esportes que não tivessem um risco maior. Mas não deu para mim, não. Ele ganhou (risos) e está fazendo futebol há cinco anos – disse a mãe, que é gerente de uma construtora em Natal.
Fernando fala perfeitamente, uma vez que contou com a fonoaudiologia desde que passou pela cirurgia no ouvido, mas ficou tímido na hora da entrevista à reportagem, diferentemente do que se viu no campo. Só se soltou um pouco na hora de definir seu estilo de jogo: “Brutal”, disse ele, que atua como volante defensor, misturando a marcação forte ao chute potente. Apesar de não parecer, o menino tem certa dificuldade para escutar treinador e companheiros em espaço aberto quando não está em contato visual. Mas a raça dele fala mais alto nas partidas.
– Ele é um garoto totalmente normal. No início tinha algumas dificuldades. Ele se policia e tem que estar sempre em contato visual com a gente. Em determinados momentos do jogo ele dá umas olhadas para mim. Entende tudo o que você fala de frente com ele. Ganhou a braçadeira porque é raçudo, tem qualidade, bate muito bem na bola, joga em quase todas as posições da defesa. Acreditamos bastante nele e temos muito orgulho. Todo mundo se espelha nele e tem admiração pelo capitão, porque ele comanda e chega junto. É um garoto excelente – elogiou o técnico do time, Aderson Fernandes.
A mãe e o padrasto dão total apoio ao sonho de Fernando de ser jogador de futebol e já pensam até em colocá-lo numa liga universitária americana. Eles procuram as soluções para qualquer tipo de problema que possa surgir. Por exemplo: compraram saquinhos especiais para proteger o aparelho auditivo da chuva sem precisar tirá-lo, o que deixaria o menino sem escutar no campo. O aparelho, por sinal, já pifou algumas vezes devido ao suor excessivo e só é consertado em São Paulo. Hoje Fernando tem um reserva, para não ter de ficar 10 ou 15 dias sem ouvir, como já aconteceu.
A confiança de Fernando é tanta que ele até já planejou a carreira. Torcedor do América-RN, planeja começar e encerrar sua trajetória no futebol com a camisa do time de coração. O sonho dele mesmo é fazer sucesso na Europa. Na Copa Fla Nordeste, no entanto, o menino não teve seu nome entre os pouquíssimos talentos pescados para testes nas categorias de base. Para quem já superou tantas dificuldades, foi apenas uma pedrinha no caminho.
Além de Fernando, outros personagens chamaram atenção na Copa Fla Nordeste. Entre as centenas de meninos jogando, havia uma menina. Jeyce Karla, de 14 anos, competiu pelo time sub-15 de João Pessoa. Ela, que atua como zagueira, foi reserva, mas chegou a entrar em campo mais de uma vez na campanha do vice-campeonato de sua equipe.
Quando o Flamengo recentemente retomou o futebol feminino profissional, a menina da Paraíba, que sonha se tornar jogadora, animou-se ainda mais com a disputa do torneio em Natal por uma questão de visibilidade. Jeyce Karla recebeu o apoio da mãe, Kalina, e do treinador Aldrin Eldrin, que garante que aplica a ela o mesmo treino dos meninos, sem distinção. O preconceito existe, segundo a menina, mas é leve.
– Às vezes existe um pouco de preconceito, mas os meninos são normais comigo. Já estou acostumada a treinar com os meninos e sinto que consigo jogar de igual para igual com eles – disse Jeyce, que tem a zagueira Rafaelle, da seleção brasileira, como inspiração.
A escolinha de Cuité, por sua vez, não teve nenhum brilho individual, mas se destacou como conjunto. Isso porque a cidade paraibana tem apenas 20 mil habitantes e levou times para quase todas as categorias. As outras escolinhas eram de cidades grandes, como João Pessoa, Natal e Maceió. Cuité ainda faturou o título no sub-15 e foi vice-campeão no sub-17.
Humberto Lopes, dono da escolinha de Cuité, viajou junto de sua delegação. Ele contou que o projeto também abraça cidades próximas, como as pequenas Nova Floresta, Sossêgo, Nova Palmeira e Picuí, todas na Paraíba, e tem aluno até de Campina Grande, que fica a 120km de distância.
– Foi uma aposta muito grande, e a gente está tendo muito sucesso. Dá para dizer que para cada 10 meninos de Cuité, oito estão na escolinha (risos). Hoje me sinto orgulhoso – disse Humberto, que é apaixonado por futebol e pelo São Paulo e, curiosamente, deu o nome de Raiceni a um dos filhos, uma mistura de Raí com Rogério Ceni, ídolos do clube.
O que é a Copa Fla: educação e diversão, não peneira A competição realizada no Nordeste foi apenas uma das edições do torneio entre as Escolinhas de Futebol do Flamengo, que começou em 2001. Além da Copa Fla Nordeste, ocorrem ao longo do ano a Copa Fla Bahia, Copa Fla Minas, Copa Fla Centro-Oeste, Copa Fla São Paulo e Copa Fla Rio de Janeiro.
A Escolinha Fla é um produto oficial do Flamengo e atualmente tem 170 unidades espalhadas pelo Brasil. Está presente em todas as regiões do país e em quase todos os estados. O clube, no entanto, não coloca a mão na massa. Quem toma conta é a empresa Time Forte, liderada por José Martins, ex-jogador do Rubro-Negro e que foi o grande idealizador do projeto. Como licencia a marca, o Flamengo fatura com isso só pelo uso da imagem e receberá em 2015 entre R$ 800 e 900 mil, segundo os cálculos do masterfranqueado.
A ideia de uma rede de escolinhas inicialmente surgiu a partir de Romário, que procurou José Martins no fim da década de 1990 para montar uma com seu nome. Mas não foi pra frente por desistência do jogador e seu empresário. Martins, então, montou um projeto parecido e o levou até o Flamengo. Deu certo. A primeira Escolinha Fla surgiu na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, e existe até hoje.
– Considero um sucesso, mas pode melhorar. A Escolinha Fla é bem-sucedida. A gente entrega para o clube tudo o que prometeu: abrangência, número de alunos, receita direto para o clube e descoberta de valores para as categorias de base – disse o ex-lateral-direito José Martins, que no Flamengo foi companheiro de jogadores como Bebeto e Aldair, mas teve de interromper a carreira aos 26 anos por problemas de saúde, após passagem pelo futebol dos EUA.
A Copa Fla e suas escolinhas já revelaram alguns talentos para as categorias de base do Flamengo. O lateral-esquerdo Jorge, que hoje faz sucesso no time profissional, já competiu no torneio. Recentemente a base incorporou nomes como Pepê, Lázaro, Djalminha e Vinícius. Este último, por sinal, é o principal destaque do bom time sub-15 do clube e é visto como uma das grandes promessas rubro-negras dos últimos anos.
Por essas e outras, muitos procuram a escolinha como porta para chegar ao Flamengo. No entanto, esse não é o principal objetivo de José Martins e sua equipe. Eles pescam alguns talentos, mas não querem passar a ideia de peneira. Antônio, coordenador técnico do projeto, vez ou outra enxerga uma oportunidade boa para o clube no meio de tantos garotos e encaminha para as categorias de base. Ele explicou que a Escolinha Fla está mais preocupada em educar e divertir.
– A gente entende que, antes de nascer um jogador de futebol, nasce uma criança, o que é algo muito complexo. A criança está chegando cada vez mais cedo à escolinha, com 4 anos de idade. O pai tem que trabalhar, a mãe também, então a gente ajuda a educar. Em primeiro lugar a gente tem que agregar valor e, através do futebol, ajudar essas famílias na educação dos filhos. Esse é nosso principal objetivo – afirmou o coordenador técnico.
Com esse espírito, nos dias 12 e 13 dezembro será realizada na Gávea a Copa Fla Brasil, que reunirá os campeões de todas as categorias das edições realizadas: sub-7, sub-9, sub-11, sub-13, sub-15 e sub-17 ao longo do ano. São esperados 720 competidores, além das muitas famílias que certamente marcarão presença na torcida.